A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA.

A desconsideração da personalidade jurídica inversa é um instituto que ainda não existe na legislação brasileira, sendo aplicada com base na jurisprudência e doutrina pela extensão do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

Sua aplicabilidade ganha efetivação ano a ano, conforme verifica-se nos precedentes do Superior Tribunal de Justiça, de forma totalmente uniforme, sendo possível ter a certeza de sua concessão quando presentes os requisitos constantes no artigo 50 do código civil brasileiro, a saber: abuso de personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade e confusão patrimonial, bem como o dolo e a fraude.

Trata-se na verdade, de mecanismo de efetivação do princípio do resultado da tutela executiva, bem como a ocorrência da devida responsabilização civil pelas dívidas contraídas, garantindo, assim, mais uma medida para proteção ao credor quando constatadas medidas abusivas do devedor.

Notadamente, o direito evolui no caso concreto de maneira mais veloz do que a legislação, visando coibir praticas abusivas, na verdade, contra o desenvolvimento da economia brasileira, assim, relativizando-se, quando preenchidos requisitos que veremos a seguir, ao máximo a autonomia tanto das pessoas jurídicas, quanto das pessoas físicas.

1 Da contextualização do instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica Inversa

No contexto empresarial que vivemos, não são raras as buscas pela tutela jurisdicional provenientes de obrigações não cumpridas, sejam elas por prestações de serviços, por obrigação de fazer ou não fazer, por entrega de coisas, etc.

Assim, à medida que se busca a máxima efetivação aos processos de execução, em que figuram como executadas as empresas e grupos econômicos, surgem novos mecanismos buscando a aplicação do Princípio do Resultado da execução no caso concreto.

Não é desconhecido o contexto do cenário mundial no tangente a arrebatadora crise econômica que cerca todos os países, que por vezes, mas não somente, acabam por alterar as condições dos negócios celebrados, por vezes onerando excessivamente uma das partes.

Não há como se estudar os fatores que levam o inadimplemento obrigacional no âmbito empresarial, mas é valido destacar a preocupação do legislador em manter a atividade empresarial, pois a empresa vai muito além da figura de seus sócios.

Ocorre que, por conta desta preocupação em manter a atividade empresarial, haja vista a geração de empregos, contribuição fiscal e diversos outros fatores que comprovam a importância da atividade empresarial para manutenção e crescimento de todo país, alguns empresários tornaram-se mestres em furtar-se do cumprimento de suas obrigações, inclusive exaurindo o patrimônio da empresa endividada e seu patrimônio pessoal, concentrando-o em outras empresas, de modo a não permitir o alcance dos mecanismos da execução e sua efetividade.

Esta conduta, aliada a proteção legal, e a lacuna presente na nossa legislação, acaba colocando em risco a atividade empresarial de seus credores, fazendo-se patente a necessidade de um mecanismo que permitisse alcançar o resultado pretendido, eis que surge a desconsideração da personalidade jurídica inversa.

2 Teorias quanto à aplicação do Instituto

Seguindo os ensinamentos de Fábio Ulhoa, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, na modalidade normal ou inversa, é quem prevê a quebra da autonomia da pessoa jurídica, com base no ordenamento jurídico brasileiro, o grande doutrinador desenvolveu duas teorias quanto ao momento de sua aplicação, sendo elas: Teoria Maior e Teoria Menor.

2.1 Teoria maior

A Teoria Maior, conforme diz Ulhoa,

“é a teoria mais elaborada, de maior consistência e abstração, que condiciona o afastamento episódico da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas à caracterização da manipulação fraudulenta ou abusiva do instituto”[1.

Temos então, de acordo com Ulhoa que os fundamentos e requisitos estão bem delimitados, a fim de evitar a insegurança jurídica quando da aplicação da desconsideração, sendo necessários maiores cuidados e mais rigidez para quebrar a autonomia da pessoa jurídica.

Ocorre que a Personalidade Jurídica, nada mais é do que uma ficção jurídica que atribuiu personalidade jurídica as pessoas jurídicas de direito privado, direito público interno e externo, diferenciando-se assim, a personalidade jurídica dos sócios e da sociedade, de modo que estas são distintas.

Assim, a Teoria Maior exige mais rigidez quando de sua aplicação, sendo necessário o preenchimento dos requisitos do artigo 50 do código civil, ou seja, será permitida levantar o véu da personalidade jurídica da sociedade e alcançar o patrimônio dos sócios, somente quando houver abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial.

Cabe ressaltar que a quebra da personalidade jurídica também pode ocorrer quando comprovada conduta fraudulenta ou mesmo dolo no uso da empresa.

Sendo assim, quando flagrante o abuso da personalidade jurídica, seja por desvio de finalidade, pela confusão patrimonial, pela fraude ou pelo dolo em não cumprir determinadas relações obrigacionais, os efeitos da quebra da personalidade jurídica permitiram que as relações obrigacionais se estendessem aos bens particulares dos sócios ou administradores da pessoa jurídica.

Logo, a teoria maior exige, necessariamente, o cumprimento do artigo 50 do código civil, de modo a vedar a aplicação descontrolada do presente instituto, mantendo a segurança jurídica necessária.

2.2 Teoria menor

Uma vez que a teoria maior prevê mais rigidez para o afastamento da personalidade jurídica, na teoria menor, os critérios são bem mais flexíveis.

Assim, havendo barreira para a satisfação dos credores por qualquer motivo referente à separação do patrimônio do sócio com o patrimônio da sociedade, haveria possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, logo, o requisito seria apenas a inexistência de bens suficientes, da pessoa jurídica, para adimplir suas obrigações, fazendo com que a iliquidez da sociedade fosse suportada pelos sócios.

Logo, conforme ensina Fábio Ulhoa:

Em toda e qualquer hipótese de execução do patrimônio de sócio por obrigação social, cuja tendência é condicionar o afastamento do princípio da autonomia à simples insatisfação de crédito perante a sociedade. É a Teoria Menor, que se contenta com a demonstração pelo credor, da inexistência de bens sociais e da solvência de qualquer sócio para atribuir a este a obrigação da pessoa jurídica[2].

Porém, em que pese o adimplemento das obrigações pactuadas onde figuram como obrigados as pessoas jurídicas, conforme o raciocínio lógico dos motivos que levaram ao desenvolvimento do instituto da desconsideração da personalidade jurídica inversa, garantir o adimplemento das obrigações, é medida necessária para manutenção da atividade empresarial, ao passo que algumas empresas, por exemplo, sobrevivem de prestação de serviços a outras empresas, no entanto, permitir que a simples comprovação de existência de bens dos sócios ou administradores passíveis de sanar qualquer inadimplemento obrigacional da sociedade que encontra-se em estado de iliquidez, traria a sociedade enorme insegurança jurídica, comprometendo a evolução empresarial nacional, e por consequência o próprio crescimento e desenvolvimento da nação.

Neste sentido, cabe ressaltar as críticas ao artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, assim:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 1º (Vetado).

§ 2º As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 3º As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 4º As sociedades coligadas só responderão por culpa.

§ 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Em que pese à proteção ao consumidor, consubstanciado no status de hipossuficiência, tal dispositivo, por vezes pode ser contrario aos próprios princípios da ordem econômica, a medida que traz um desincentivo a investimentos sociais de riscos, pois, por critérios muito poucos rígidos, relativiza-se a figura da pessoa jurídica e executa-se os bens dos sócios.

2.3 Pressupostos para utilização do Instituto

Por óbvio, deve-se preservar o mínimo de segurança jurídica para garantir o desenvolvimento nacional, desta maneira, a aplicação da teoria não pode ser feita de maneira indiscriminada.

Assim, deve-se preencher ao menos um requisito determinado em lei para que se obtenha a desconsideração da personalidade jurídica, e para o disregard of legal entity na modalidade inversa, apesar de construída na doutrina e jurisprudência, será necessário maiores requisitos para sua concessão.

Logo, passaremos aos pressupostos para sua concessão.

2.3.1 Desvio de finalidade

Os atos da pessoa jurídica devem estar respaldados nos seus atos constitutivos, de maneira que, o que for além do estabelecido será ato da pessoa natural, e não da pessoa jurídica, logo, o que vai além do mandato contratual, do estabelecido no contrato ou estatuto social, acaba por legitimar a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

Assim, tratando-se a finalidade do objetivo, da razão de ser da constituição de uma sociedade, os atos subsequentes a sua criação devem estar de conformidade com a sua razão de ser, pois, ultrapassando este limite, utilizando da ficção jurídica da personalidade jurídica, para atuação em atos não relacionados a finalidade social, estará, por consequência, ocorrendo seu desvio, dando ensejo a responsabilização pessoal daquele que desrespeitou a finalidade da pessoa jurídica.

Neste sentido, Maria Helena Diniz prossegue dizendo:

Há uma repressão ao uso indevido da personalidade jurídica, mediante desvio de seus objetivos ou confusão do patrimônio social para a prática de atos abusivos ou ilícitos, retirando-se, por isso a distinção entre bens do sócio e da pessoa jurídica, ordenando que os efeitos patrimoniais relativos a certas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios, recorrendo, assim, à superação da personalidade jurídica, porque os seus bens não bastam para a satisfação daquelas obrigações, visto que a pessoa jurídica não será dissolvida, nem entrará em liquidação[3].

Resta claro, desta maneira, que a tentativa de blindar o patrimônio, utilizando a personalidade jurídica de uma determinada empresa para praticar atos que não guardam relação com a sua finalidade, restam por caracterizar o desvio de finalidade, e, portanto, pode dar lastro a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica.

2.3.2 Confusão Patrimonial

As sociedades empresárias, quando constituídas na forma Limitada ou Anônima, trazem como princípio básico a autonomia patrimonial, de maneira que o patrimônio da empresa existe separadamente do patrimônio de seus sócios e acionistas, ou seja, a sociedade empresária possui patrimônio próprio, que em regra, será o único responsável por eventuais débitos.

Porém, em que pese à restrição quanto à responsabilidade patrimonial da sociedade empresaria, em certas e determinadas relações de obrigações, os efeitos da autonomia patrimonial podem ser desfeitos e estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios.

A confusão patrimonial ocorre quando, de acordo com o Professor e Contador Salézio Dagostim, falta uma ordem interna, não ocorrendo distinção entre uma coisa e outra, em termos patrimoniais.

Deste modo, as relações jurídicas próprias da sociedade, devem, necessariamente, guardar relação com sua finalidade, uma vez que a pessoa jurídica tem relações próprias, não se confundindo com as relações dos sócios, do administrador ou mesmo de outras entidades, ou grupos econômicos, com as quais sejam definidas relações de fato ou de direito.

Nesse sentido, o artigo 1.179 do Código Civil, é expresso ao dizer sobre a necessidade de manutenção da escrituração contábil específica, sendo não somente um meio de garantir a finalidade e o correto desenvolvimento da atividade empresarial, como de assegurar os interesses da sociedade, e por consequência dos sócios, bem como terceiros e eventuais credores.

Logo, sempre que houver confusão patrimonial, considerar-se-á abusivo uso da personalidade jurídica, que de acordo com o artigo 50 do Código Civil, permitirá a desconsideração da personalidade jurídica.

Cabe ressaltar, que para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica inversa, há que ser observado o caso concreto, sendo necessária a comprovação da confusão patrimonial, utilizando, na verdade, forma muito semelhante a aplicação da teoria tradicional, desde que observadas as particularidades, pois nesse caso, vai-se além da figura dos sócios e administradores.

2.3.3 Dolo e fraude

Talvez o critério, a meu ver, mais importante para aplicação do disregard, é relativo à utilização da personalidade jurídica de forma fraudulenta ou dolosa.

O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 104, traz os requisitos dos negócios jurídicos, sendo o objeto lícito, forma prescrita ou não defesa em lei e agente capaz, assim, toda pessoa jurídica deverá observá-los durante sua existência, não apenas nas celebrações de negociais, mas também quando de seu ato constitutivo, seguindo uma série de requisitos de ordem pública, que devem ser observados em toda a sua existência, até sua dissolução e liquidação.

Desta forma, cumpre destacar que a atuação da pessoa jurídica, deverá seguir o estabelecido em seu contrato ou estatuto social, quando da sua constituição, não sendo possível agir em sentido contrário ao por ela prevista, de modo que a divergência entre a especificação de suas atividades em seu ato constitutivo para o que ocorre de maneira real pode ensejar a cassação da personalidade jurídica.

Assim, a não correspondência das atividades praticadas com o disposto no contrato ou estatuto social, ou não observância dos preceitos legais obrigatórios, enseja a desconsideração da personalidade jurídica por dolo ou fraude a terceiro.

Entende-se por dolo o desejo desvirtuado tendente a viciar a vontade do destinatário, desviando-o de sua correta direção, ensejando anulação quando o dolo for à causa do negócio jurídico, conforme artigo 145 do Código Civil.

Enquanto que por fraude, entende-se o processo ardiloso tendente a burlar a lei ou mesmo convenção preexistente ou futura, inclusive um número determinado de terceiros, em que haja relacionamento com o fraudador.

O dolo geralmente visa à própria conclusão do negócio jurídico, enquanto que a fraude geralmente visa à execução do negócio.

3 Considerações Finais

Observados os princípios basilares a proteção da pessoa jurídica, haja vista a garantia de um sistema jurídico estável, permitindo, portanto, o regular desenvolvimento da economia nacional, é cediço que a crise de inadimplemento, causada pelo não cumprimento obrigacional, fere a estabilidade jurídica da nação, de modo mais gravoso que a autonomia da pessoa jurídica.

Deste modo, quando reconhecido os requisitos explorados pelo presente estudo, a autonomia da pessoa jurídica passará a ser relativa, e serão considerados os fatos reais.

Por obvio que a aplicação do instituto não ocorre de forma desregrada, até porque a pessoa jurídica necessita de efetiva proteção, o que nota-se é que quando está for utilizada como meio de blindagem patrimonial, ou seja, como forma de agente garantidor de impunidade prejudicando seus contratantes, está será desconsiderada, e será buscada a satisfação obrigacional correspondente, expressa em valor econômico (dinheiro), em face de qualquer empresa ou patrimônio cujo sócio tenha participação, não restando alternativa a não ser o cumprimento daquilo que se obrigou.

Por fim, não há que se falar em ilegalidade, muito menos em insegurança jurídica, uma vez que, em que pese tornar instável a atividade de uma empresa que age com fins fraudulentos, não se pode prejudicar diversas outras empresas, que contratam de boa-fé, com a referida empresa, apenas para garantir a segurança jurídica desta, posto que tal proteção seria medida de insegurança jurídica contra todas as outras empresas que agem corretamente e prestam os serviços contratados sem receber a correspondente e devida contraprestação.

Sendo estes, os requisitos para concessão da desconsideração da personalidade jurídica inversa.

Referências

CANTIDIANO, Luiz Leonardo. Reforma da Lei das S. A.. São Paulo: Renovar, 2002.

COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 51-52.

COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial.8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2005. V II, p. 40.

COMPARATO, Fábio Konder. O Poder de Controle da Sociedade Anônima. 4ª ed. São Paulo: Editora Forense, 2005.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. I. 18ª Ed. Saraiva. São Paulo. 2002. P. 260.

GONÇALVES, Carlos Alberto. Direito civil brasileiro: parte geral. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

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Fonte: Publicado por Cristianne Messa - JusBrasil - 24/10/2014.

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