AFETO NA RELAÇÃO FAMILIAR

Paternidade biológica e paternidade socioafetiva

Apesar dos avanços da tecnologia biomédica, nos últimos anos, a paternidade biológica exerce um papel secundário no Direito de Família, especialmente quando confronta com os princípios da afetividade, da igualdade entre os filhos e da dignidade da pessoa humana, que imperam na convivência familiar.

Esses princípios, que fundamentam a paternidade socioafetiva, foram consagrados pelo nosso ordenamento jurídico e, por isso, sobrepõem-se e prevalecem até mesmo ante uma prova biológica, por exemplo, um exame de DNA com resultado positivo, que aponte o verdadeiro genitor, mas que jamais teve uma convivência familiar com os filhos biológicos mencionados no exame.

Em nossa Constituição Federal de 1988, além do artigo 1o, inciso III, que define a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais de nossa ordem jurídica, destacam-se outros dispositivos que cuidam, especificamente, de relações familiares entre pais e filhos.

Realmente, o artigo 227, § 6o, estabelece que todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem, incluindo, especialmente, nesse âmbito da igualdade de direitos, os filhos havidos por adoção. O caput desse mesmo dispositivo constitucional assegura à criança e ao adolescente o direito à convivência familiar, sem qualquer negligência, crueldade ou discriminação, não sendo prioridade, portanto, a origem genética. O artigo 226, § 4o, atribui à comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida.

No âmbito infraconstitucional, nosso Código Civil de 2002, em seu artigo 1.593 [1], reconhece outras espécies de parentesco civil (outras origens), além do decorrente da adoção, acolhendo, assim, essa nova base de vínculo parental, a paternidade socioafetiva fundada na posse de estado do filho.

Outros dispositivos do Código Civil de 2002 destacam-se também no sentido de acolherem o paradigma da paternidade socioafetiva.

O artigo 1.596 estabelece que todos os filhos, independentemente de sua origem, possuem os mesmos direitos, conforme se verifica de sua redação, verbis: “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

O artigo 1.597, inciso V, ao presumir concebido na constância do casamento o filho havido por inseminação artificial heteróloga, com a prévia autorização do marido, acaba admitindo uma origem parcialmente biológica desse filho, pois o marido que autorizar a reprodução humana assistida com utilização de sêmen alheio, será um pai exclusivamente socioafetivo, o que não poderá ser impugnado por investigação de paternidade posterior, uma vez que a lei autoriza o aludido procedimento artificial.

O artigo 1.605, inciso II, prevê que, na falta ou defeito do termo de nascimento, poderá ser provada a filiação por qualquer modo admissível em direito, especialmente, “quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos”, por exemplo, quando existe um tratamento pessoal e afetivo recíproco entre duas pessoas, como pai e filho e vice versa; quando uma pessoa provê a educação e o sustento da que é por ele criada, o que também é conduta típica entre pai e filho; quando duas pessoas se apresentam em público, reciprocamente, como pai e filho, sendo essa convivência pessoal e afetiva, específica e típica do relacionamento entre pai e filho, reconhecida pela sociedade e pela família; entre outros exemplos possíveis.

Esse dispositivo legal consagra a posse de estado de filiação, que abrange as hipóteses do filho de criação e da adoção de fato, esta também denominada “adoção à brasileira”.

E o artigo 1.614 admite que o filho rejeite o reconhecimento do estado de filiação, requerido posteriormente pelo pai biológico que não efetuou o registro após seu nascimento.

Como se nota, as aludidas normas constitucionais e infraconstitucionais demonstram que a paternidade e a filiação socioafetivas foram acolhidas e consagradas pelo nosso ordenamento jurídico, de maneira a possibilitar o seu reconhecimento, mesmo que não exista vínculo biológico.

Tratando do instituto jurídico da adoção, João Baptista Villela já vislumbrava a afetividade como essência do vínculo da paternidade, ressaltando que “As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade”[2].

Alerta, ainda, que o equívoco, “a propósito da investigação de paternidade, está, pois, em não se distinguir que posso obrigar alguém a responder patrimonialmente pela sua conduta – seja esta o descumprimento de um contrato, a prática de um ilícito ou o exercício de uma atividade potencialmente onerosa, como o ato idôneo à procriação –, mas não posso obrigar, quem quer que seja, a assumir uma paternidade que não deseja. Simplesmente porque é impossível fazê-lo, sem violentar, não tanto a pessoa, mas a própria idéia de paternidade. Tem tanto esta de autodoação, de gratuidade, de engajamento íntimo, que não é susceptível de imposição coativa. Pai e mãe ou se é por decisão pessoal e livre, ou simplesmente não se é. Assim, a lei e a Justiça desrespeitam gravemente uma criança, quando lhe dão por pai quem, em ação de investigação de paternidade, resiste a tal condição. Um ser com todos os vícios e crimes, mas que aceite verdadeiramente a paternidade, é preferível àquele que a recuse, ornado, embora, de todos os méritos e virtudes, se se tomar como critério o bem da criança. Imagine-se cada um tendo como pai ou mãe, quem só o é por imposição da força: ninguém experimentará mais viva repulsa, nem mais forte constrangimento. Todo o direito de família tende a se organizar, de resto, sob o princípio basilar da liberdade, tão certo é que as prestações familiais, seja entre cônjuges, seja entre pais e filhos, só proporcionam plena satisfação quando gratuitamente assumidas e realizadas”.

Cuidando do tema e referindo-se às bases da filiação socioafetiva, elucida Luiz Edson Fachin [3]: “O reconhecimento do fundamento biológico da filiação, com o desenvolvimento das técnicas da engenharia genética, a atenuação da presunção pater is est, a vedação constitucional ao tratamento discriminatório e o conseqüente acesso dos filhos outrora ilegítimos ao estatuto jurídico da filiação, em patamar de igualdade com os denominados filhos legítimos, foram significativos avanços do Direito no que tange a questão do estabelecimento da paternidade. Todavia, sendo a paternidade um conceito jurídico e, sobretudo, um direito, a verdade biológica da filiação não é o único fator a ser levado em consideração pelo aplicador do Direito: o elemento material da filiação não é tão-só o vínculo de sangue, mas a expressão jurídica de uma verdade socioafetiva. O elemento socioafetivo da filiação reflete a verdade jurídica que está para além do biologismo, sendo essencial para o estabelecimento da filiação”.

E continua: “O fato a ser tomado pelo Direito como filiação não constitui apenas um fato biológico, mas, também, um fato social, que se revela tanto na sua manifestação perante o grupo social, como, especialmente, na esfera psicológica e afetiva dos sujeitos (…) Prepondera, pois, o laço afetivo. A verdade sociológica da filiação se constrói, revelando-se não apenas na descendência, mas no comportamento de quem expende cuidados, carinho no tratamento, quer em público, quer na intimidade do lar, com afeto verdadeiramente paternal, construindo vínculo que extrapola o laço biológico, compondo a base da paternidade”[4].

No mesmo sentido, esclarece Maria Berenice Dias [5] que “A necessidade de manter a estabilidade da família, que cumpre a sua função social, faz com que se atribua um papel secundário à verdade biológica. Revela a constância social da relação entre pais e filhos, caracterizando uma paternidade que existe não pelo simples fato biológico ou por força de presunção legal, mas em decorrência de uma convivência afetiva. Em matéria de filiação, a verdade real é o fato de o filho gozar da posse de estado, que prova o vínculo parental (…) Constituído o vínculo da parentalidade, mesmo quando desligado da verdade biológica, prestigia-se a situação que preserva o elo da afetividade. Não é outro o fundamento que veda a desconstituição do registro de nascimento feito de forma espontânea por aquele que, mesmo sabendo não ser o pai consangüíneo, tem o filho como seu” (destaques do original).

Outro não é o entendimento de nossos Tribunais, que, igualmente, vêm admitindo a paternidade socioafetiva, como se verifica nas decisões adiante citadas:

“Apelação Cível. Reconhecimento de paternidade socioafetiva. Criança que foi acolhida aos três meses de idade, criada como se filho fosse ante a impossibilidade biológica do casal em gerar filhos. Adoção não formalizada. A verdade real se sobrepõe a formal, cumprindo-nos conhecer o vínculo afetivo-familiar criado pelo casal e a criança, hoje adulto, ainda que não tenha havido adoção legal. Paternidade socioafetiva que resulta clara nos autos pelos elementos de prova”[6].

“Apelação Cível. Negatória de paternidade. Paternidade socioafetiva. Ainda que o autor, pai registral, não seja o pai biológico do réu, mantém-se a improcedência da negatória da paternidade, se estabelecida a

paternidade socioafetiva entre eles. Em se tratando de relação de filiação, não se pode compreender que seja descartável, ao menos em casos como o presente, onde por vinte anos o réu teve como genitor o autor. Pretensão que afronta o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, porque o réu ficaria sem pai registral, ou seja, sem filiação e sobrenome paterno. Precedentes doutrinários e jurisprudenciais” [7].

“O código atual abandonou a sistemática e passou a chamar de civil o parentesco decorrente da adoção, aquele vindo de inseminação artificial heteróloga consentida (artigo 1597, V) e o vindo da afinidade. É possível aqui incluir, inclusive, a filiação sócio-afetiva, conforme já reconheceu o Superior Tribunal de Justiça (REsp. 83371/RS, julgado em 17.05.2007) e estabelece o enunciado número 256 do Conselho Nacional de Justiça: ‘Art. 1593: A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil’. O parentesco consangüíneo, sem dúvida, garante a inclusão no plano de saúde da requerida. Essa situação não é contestada pela requerida e o comprova o fato de outros filhos do autor serem seus dependentes nele. À filiação civil há de se atribuir o mesmo direito. Isso porque a Constituição Federal equiparou, para todos os efeitos, os filhos, qualquer que fosse a sua categoria (artigo 227, § 6o)”[8].

“(…) aqui está absolutamente configurada uma ‘adoção à brasileira’ em que a pessoa, embora ciente da ausência de vínculo biológico, reconhece o outro como filho. Nesses casos, o que prevalece não é a verdade biológica, mas a socioafetiva, porquanto a pessoa que teve reconhecida a paternidade passa a gozar do estado de filho, que não lhe pode ser retirado simplesmente por ato unilateral do pai registral, como se o ato fosse de mero capricho, o reconhecimento é irrevogável e irretratável, pois caracterizada uma adoção. Em verdade, apenas nas hipóteses de o filho desejar estabelecer a verdade biológica é que a jurisprudência tem admitido a revogação do reconhecimento levado a efeito (…) No mais, desimportante tenha o exame pericial excluído a paternidade, consoante o posicionamento já externado, em ações desse jaez, em que ocorrida típica ‘adoção à brasileira’, o princípio da verdade socioafetiva sobrepuja ao da biológica. Nesse diapasão, escorreita a condução da dilação probatória pelo Juízo a quo, porquanto este cuidou em determinar a realização de estudos social e psicológico exatamente para aferir a existência de vínculo afetivo entre as partes”[9].

Registre-se, nesse passo, a decisão do Tribunal de Justiça do Ceará [10], que “enfatiza manifestação de vontade exercida pelo pai no reconhecimento de filho que sabia não ser biologicamente seu”, verbis: “o reconhecimento espontâneo da paternidade por quem sabe não ser o pai biológico tipifica verdadeira adoção (adoção à brasileira), a qual é irrevogável, descabendo postular-se anulação do registro de nascimento, salvo se demonstrada de forma convincente a existência de vício de consentimento, o que inocorreu no caso em foco”.

“ ‘O estado de filiação não está necessariamente ligado à origem biológica e pode, portanto, assumir feições originadas de qualquer outra relação que não exclusivamente genética. Em outras palavras, o estado de filiação é gênero do qual são espécies a filiação biológica e a não biológica (…) Na realidade da vida, o estado de filiação de cada pessoa é único e de natureza socioafetiva, desenvolvido na convivência familiar, ainda que derive biologicamente dos pais, na maioria dos casos’ (Mauro Nicolau Júnior in ‘Paternidade e Coisa Julgada. Limites e Possibilidade à Luz dos Direitos Fundamentais e dos Princípios Constitucionais’, Curitiba: Juruá Editora, 2006)”[11].

Por isso, Luiz Edson Fachin [12] destaca esse “reconhecimento pelos tribunais de uma situação que se coloca como base das relações familiares. Se não há dúvida acerca da relevância do reconhecimento dos laços biológicos da filiação, o vínculo que une pais e filhos, e que lhes oferece tais qualificações, é mais amplo que a carga genética de cada um: diz respeito às relações concretas entre eles, o carinho dispensado, o tratamento afetuoso, a vontade paterna em se projetar em outra pessoa, a quem reconhece como filho, não só em virtude do sangue, mas em virtude do afeto, construído nas relações intersubjetivas concretas. Tais relações são, não raro, dotadas de objetiva recognicibilidade, inclusive por inferência de comportamentos concludentes”.

Por outro lado, mesmo ressalvando o direito à busca da origem genética na relação familiar socioafetiva, elucida Wania Andréa Luciana Chagas Duarte de Figueiredo Campos[13] que “a investigação de paternidade é capaz de indicar o pai biológico e não de dar um pai ao investigante. Através da ação judicial o indivíduo tem conhecimento da existência ou não do vínculo biológico. Conhecer a origem significa entender seus traços socioculturais, devendo ser compreendido como um direito fundamental do ser humano. O direito à identidade genética deve ser entendido, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, somo elemento intrínseco ao direito da personalidade”.

E continua: “O reconhecimento do direito à identidade genética não implica, necessariamente, gerar uma relação de parentesco, e, por conseguinte, seus efeitos patrimoniais, mas dar a quem investiga a possibilidade de conhecer mais sobre si, adequando sua realidade à sua verdade, e, assim, manter uma convivência plena com o meio social que o cerca”.

Por essa razão, conclui que “aos filhos provenientes da adoção, e até mesmo de reprodução assistida heteróloga (considerando a possibilidade nos casos especiais que envolvam a prevenção da própria vida, em razão da saúde), deve ser assegurado o direito ao conhecimento de suas origens, sem que, no entanto, essa identificação importe na desconstituição da paternidade/maternidade da filiação jurídica ou socioafetiva, ou seja, não cause quaisquer efeitos sobre a relação de parentesco, pois não deve haver valoração da identidade biológica sobre os laços afetivos presentes na relação entre pais e filhos”[14].

Aliás, nesse sentido, decidiu a 7a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sendo Relator o Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves[15], que “a possibilidade de investigação não traz necessariamente sequelas obrigacionais e patrimoniais. Reconhecida a filiação socioafetiva, a investigação de paternidade não leva a desconstituição ou anulação do registro de nascimento, mas se limita a atender a possibilidade de se conhecer a paternidade sem gerar sequelas patrimoniais”.

Concluiu-se, ainda, nesse julgado: “Se identificada a paternidade biológica, julgo procedente, mas sem anulação do registro pelo reconhecimento da filiação socioafetiva, o que atende ao direito constitucional de busca da identidade biológica”.

Tive oportunidade de dar Parecer em caso, em que, embora tenha sido constatada, por exame pericial de DNA, a paternidade biológica de determinadas pessoas não se pode simplesmente ignorar e descartar quarenta anos de convívio intenso e diário de seus filhos biológicos com o pai afetivo (registral), à base de carinho, amor, afeto, dedicação, assistência imaterial e comprometimento recíprocos, com efetiva e constante participação do pai na criação e educação de seus filhos registrados.

Com fundamento nesse meu Parecer, julgou o Tribunal de Justiça do Ceará [16] que, com esteio na doutrina e na jurisprudência”, mostra o mesmo Parecer que “os laços de afeto não podem ser olvidados para se anular a titulada “adoção à brasileira”, em prol da gênese biológica”.

No mesmo sentido, outros julgados devem ser considerados, reconhecendo que “O reconhecimento da paternidade é ato irrevogável (art. 1o da lei n. 8.560/92 e art. 1.609 do CC).”[17]

Como demonstram os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais citados, a posterior constatação pericial da paternidade biológica, no caso estudado nesse Parecer, não tem o condão de simplesmente descartar e apagar um vínculo jurídico de paternidade e filiação socioafetivas, consolidado por convívio familiar de quarenta anos de afetividade, dedicação e comprometimento do pai na criação e educação dos filhos que registrou como seus.

Daí a possibilidade até de manutenção da paternidade constante do registro, mesmo em detrimento da prova pericial da paternidade biológica, especialmente quando declarada e admitida como fato incontroverso, em processo judicial, a existência de uma sólida e duradoura relação paterno-filial socioafetiva.

Ressalta-se, finalmente, com Paulo Luiz Netto Lobo [18] que “A paternidade socioafetiva não é espécie acrescida, excepcional ou supletiva da paternidade biológica; é a própria natureza do paradigma atual da paternidade, cujas espécies são a biológica e a não-biológica. Em outros termos, toda a paternidade juridicamente considerada é socioafetiva, pouco importando sua origem. Nas situações freqüentes de pais casados ou que vivam em união estável, a paternidade e a maternidade biológicas realizam-se plenamente na dimensão socioafetiva. Sua complexidade radica no fato de não ser um simples dado da natureza, mas uma construção jurídica que leva em conta vários fatores sociais e afetivos reconfigurados como direitos e deveres. Superou-se a equação simplista entre origem genética, de um lado, e deveres alimentares e participação hereditária, de outro. A paternidade é múnus assumido voluntariamente ou imposto por lei no interesse da formação integral da criança e do adolescente e que se consolida na convivência familiar duradoura”.

E complementa: “Nem toda paternidade socioafetiva resulta da consanguinidade, pois o direito assegura igualdade de direitos e deveres ao pai que assumiu voluntariamente o estado de filiação nas hipóteses de adoção, de inseminação artificial heteróloga e de posse de estado. Em todas, o estado de filiação assim constituído é inviolável e não pode ser desfeito por decisão judicial, salvo na situação comum de perda do poder familiar (art. 1.638 do Código Civil). A paternidade desaparece em face do genitor biológico em virtude da perda do poder familiar, nas hipóteses de adoção e de declaração judicial de posse de estado de filiação”, ressaltando, finalmente, que a “paternidade socioafetiva decorrente da posse de estado de filiação não pode ser contraditada”[19].

2 – Indenização por abandono afetivo

Por outro lado, o abandono afetivo paterno tem sido reconhecido pelos Tribunais como causador de indenização por danos morais.

Assim, não basta o pagamento regular de pensão alimentícia, mas é preciso que existam cuidados pessoais com os filhos pensionados, como um dever inafastável decorrente da paternidade ou da maternidade.

Os pais não são obrigados a amar seus filhos, mas a cuidar deles, material e imaterialmente. O princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1o, inciso III, da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, exige esse respeito devido à pessoa. Os direitos e deveres da personalidade devem ser cumpridos, para que se valorize a pessoa com a dignidade necessária no convívio social.

Julgado do Tribunal de Alçada de Minas Gerais [20] “reconheceu ao filho o direto a ter reparados os danos morais decorrentes do abandono paterno, fixando indenização correspondente a 200 salários mínimos”, com a seguinte ementa: ‘Indenização danos morais – Relação paterno-filial – Principio da dignidade da pessoa humana – Princípio da afetividade’ ”. Destaque-se, nesse julgado, que “O papel dos pais não se limita ao dever de sustento, de prover materialmente o filho com os meios necessários à subsistência orgânica. Vai muito além, para abranger a subsistência emocional, e a função psicopedagógica, de educação e assistência em geral. Na medida em que não é cumprido esse irrenunciável papel, por injustificável ausência paterna, exsurge o dano que há de ser reparado”.

Muitas decisões existem nesse sentido [21], como a do juiz Mário Romano Maggioni, da 2a Vara de Capão da Canoa (RS), de agosto de 2003 (proc. 1.030.012.032-0) que “condenou um pai a pagar 200 salários mínimos à filha que alegou abandono material e psicológico” e a do juiz Luís Fernando Cirillo, da 31a Vara Cível de São Paulo- SP (proc. 01.36747-0) que “condenou um pai a pagar à filha indenização de R$50 mil por danos morais e para custear tratamento psicológico”.

Em recente julgamento do Superior Tribunal de Justiça, pronunciou-se a Ministra Nancy Andrighi [22] que “Amar é faculdade; cuidar é dever”. Nesse caso, a decisão favoreceu uma mulher de 38 anos, que litigava há 12 anos, sob fundamento de que ela deveria ter sido cuidada em sua infância e juventude por seu pai, que foi, por esse descuidado, condenado a pagar indenização de 200 mil reais de danos morais.

Essa filha obteve o reconhecimento da paternidade por via judicial.

Declarou a Ministra Relatora em seu voto que “O cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente”… “Não se discute mais a mensuração do intangível – o amor -, mas sim, a verificação do cumprimento, descumprimento ou parcial cumprimento de uma obrigação legal: cuidar”.

E continua: entre pais e filhos, além dos vínculos afetivos, existem os legais”. “… entre os deveres inerentes ao poder familiar estão o convívio, o cuidado, a criação, a educação, a transmissão de atenção e o acompanhamento do desenvolvimento sociopsicológico dos filhos. Essas obrigações existem tanto em relação aos filhos biológicos quanto aos adotivos”.

E acrescento, também, quanto aos filhos na paternidade e na maternidade afetiva, em que o dever paterno e materno nascem do amor e do respeito à pessoa, que não pode ser abandonada e esquecida.

Nessa reportagem citada, ressalta-se que o Tribunal de Justiça de São Paulo, nesse caso de abandono afetivo, sendo o pai “abastado e próspero”, o havia condenado ao pagamento de danos morais de 415 mil reais, valor que foi reduzido no STJ a 200 mil reais.

Nessa reportagem fui consultado e me manifestei favorável a essa decisão, lembrando, na oportunidade, que “Estamos na era do afeto, tudo é afetivo. A Justiça decide agora sobre uma série de problemas que antigamente não se consideravam”.

E acrescentei quanto ao valor da indenização fixada que o juiz leva em conta o poder econômico do pai, destacando “O STJ deve ter avaliado a vida do pai, se ele é um milionário, se leva uma vida de vantagens e se privou sua filha de certos benefícios”.

Ao seu turno, manifesta-se favoravelmente à indenização decorrente de abandono afetivo, nessa relação entre pais e filhos, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka23, afirmando que “O dano causado pelo abandono afetivo é, antes de tudo, um dano à personalidade do indivíduo”.

Giselda analisa, nessa oportunidade, uma decisão24 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, comentando que, ao assistir a entrevista dada pela vítima, desse processo, na TV, que “Havia a expressão de alguma coisa que poderia ser chamada de dor ou de solidão, mas que era bem mais do que isso”.

Em 50 anos de advocacia, tenho presenciado casos dolorosos de rejeição de paternidade, de pessoas que colocam o patrimônio à frente do sentimento ou que usam o interesse material para tirar vantagens indevidas, geralmente à época da morte dos responsáveis.

Reconhecer-se a paternidade, nem sempre, justifica o reconhecimento de direitos materiais.

A dor pelo não reconhecimento do amor é constante nos atos de nossa existência e necessitam de uma indenização, para penalizar a negligência, ao descaso, ao desamor, que deve ser medido de caso para caso, ainda que sua configuração material seja pro forma, simbólica.

Ninguém pode ser obrigado a amar, pois esse é também um direito da personalidade de quem exerce esse sentimento. Por tal razão, como menciona a Ministra Nancy Andrighi, a falta de cuidado deve ser apenada, para que não se desrespeite essa verdadeira responsabilidade social.

Quem gera um filho não está autorizado, pelo Direito Natural, a desprezá-lo, seja qual for a origem desse nascimento, se querido ou

não.

O ser humano deve ser respeitado, essencialmente, como obra da Natureza, que precisa ser preservada, além das querelas e das fraquezas do ser humano.

Álvaro Villaça Azevedo é Doutor em Direito, Professor Titular de Direito Civil, Regente de Pós-Graduação e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); Professor Titular de Direito Romano, de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo; Professor Titular de Direito Romano e Diretor da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo; Advogado e ex- Conselheiro Federal e Estadual, por São Paulo, da Ordem dos Advogados do Brasil; Parecerista e Consultor Jurídico.


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