DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR - FAMÍLIA SUBSTITUTA - MAIOR INTERESSE DA CRIANÇA

1. A proteção à criança e ao adolescente foi erigida como prioridade pelo Constituinte, sendo dever da família, da sociedade e do Estado, numa atuação conjunta, assegurar aos menores "o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (Art. 227, CR/88).

 

2. Buscando assegurar o bem estar das crianças e dos jovens, a legislação expressamente prevê hipóteses de extinção do poder familiar, nos termos da lei civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente, quando demonstrada a inadequação do ambiente em que estão inseridos.

 

3. Comprovada a negligência da genitora em relação ao filho (derivada do descuido em relação à sua própria saúde psíquica), justifica-se a medida protetiva de destituição do poder familiar, mormente quando o menor já está inserido e plenamente adaptado à família substituta, que o acolheu há mais de 4 anos, e com esta tem vivido por quase metade de seus 10 anos de idade.

 

4. Mãe bipolar e instável emocionalmente, que recusa o tratamento psiquiátrico.

 

5. Criança que tem os atuais guardiães e pretensos adotantes como referência familiar, manifestando o desejo de com eles permanecer.

 

6. Recurso não provido.

 

APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0183.08.151724-9/004 - COMARCA DE CONSELHEIRO LAFAIETE - APELANTE (S): S.F.B. - APELADO (A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS

 

A C Ó R D Ã O

 

(SEGREDO DE JUSTIÇA)

 

Vistos etc., acorda, em Turma, a 5ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.

 

DESEMBARGADORA ÁUREA BRASIL

 

RELATORA

 

DESA. ÁUREA BRASIL V O T O

 

Trata-se de apelação cível interposta por S.F.B. em face da r. sentença de f. 808/815, proferida pelo MM. Juiz José Aluísio Neves da Silva, do Juizado da Infância e Juventude da comarca de Conselheiro Lafaiete que, nos autos de ação de destituição do poder familiar ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais contra a ora apelante, julgou procedente o pedido inicial.

 

A apelante apresenta suas razões recursais às f. 818/827, alegando que: a) "não há nos autos qualquer prova relativa aos fatos alegados pelo MP, sendo que a presente fundamenta-se, em uma suposta denúncia não comprovada, pois pessoas que tinham interesse em retirar o filho da apelante inventaram 'estórias', sem qualquer comprovação" (sic); b) não se verifica qualquer situação capaz de ensejar a destituição do pátrio poder, conforme prevê o art. 1.638 do Código Civil; c) os estudos sociais e psicológicos em nenhum momento aconselham a retirada do poder familiar; d) o fato de a apelante ter depressão não lhe retira a capacidade de ser mãe; e) a medida deferida em primeira instância é "extrema e desnecessária, visto que a mãe tem ótima relação com o filho, sendo que ambos tem amor recíproco, tanto que não há nenhum relato de maus tratos por parte da mãe" (sic); f) deve-se priorizar a manutenção do filho com a mãe biológica, utilizando-se de todos os recursos disponíveis e acreditando na recuperação do ser humano; g) se a genitora possui condições de cuidar de seu filho mais novo, de apenas 1 ano e 1 mês, não se compreende o motivo pelo qual não teria condições de cuidar de M.

 

Contrarrazões às f. 830/839.

 

Remetidos os autos à Procuradoria-Geral de Justiça, manifestou-se a douta Procuradora, Drª. Luísa Carelos, pelo não provimento do recurso (f. 844/851).

 

Presentes os requisitos para sua admissibilidade, conheço do recurso.

 

A proteção à criança e ao adolescente foi erigida como prioridade pelo Constituinte, sendo dever da família, da sociedade e do Estado, numa atuação conjunta, assegurar aos menores "o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (Art. 227, CR/88).

 

Consagrou-se a "Doutrina da Proteção Integral", colocando-se o bem estar das crianças e adolescentes como uma absoluta prioridade do Estado, da família e da sociedade, sendo dirigida aos menores uma especial atenção e cuidado, devido à sua peculiar condição de pessoas em desenvolvimento.

 

O pátrio poder, embora consista originalmente uma prerrogativa dos pais biológicos, não lhes outorga apenas direitos sobre os infantes, mas traduz uma série de obrigações dos genitores em relação à prole, justamente com o objetivo de conferir efetividade à previsão Constitucional.

 

É uníssono na doutrina e na jurisprudência que se deve atentar sempre para "o melhor interesse do menor", buscando garantir-lhe uma criação apropriada, num ambiente harmonioso e propício ao seu adequado desenvolvimento físico, emocional e intelectual.

 

Com vista a assegurar o bem estar das crianças e dos jovens, o ordenamento expressamente prevê hipóteses de extinção do poder familiar, nos termos da lei civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente, quando demonstrada a inadequação do ambiente em que estão inseridos.

 

A respeito, dispõe o Código Civil:

 

Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:

 

I - castigar imoderadamente o filho;

 

II - deixar o filho em abandono; III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;

 

IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, em seu art. 98 e seguintes, prevê o procedimento a ser adotado em caso de violação ou ameaça a quaisquer dos direitos nele protegidos por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis.

 

Comprovado que os genitores são incapazes de atender aos deveres de sustento, guarda e educação dos filhos, justifica-se a medida protetiva de destituição do poder familiar, inserindo-se a criança em outro núcleo no qual possa ser suficientemente assistida.

 

Da análise dos autos, verifico, lamentavelmente, uma evidente inabilidade da ré para dirigir sua própria vida, em virtude de sua falta de estabilidade emocional e psicológica, o que se agrava diante da recusa sistemática em se submeter aos tratamentos psicológicos e psiquiátricos indicados.

 

A recorrente não possui condições de cumprir com os cuidados e deveres inerentes à maternidade responsável, em virtude da imprevisibilidade de seu quadro psicológico, que por vezes culmina em surtos que colocam a integridade do menor em risco, os quais somente poderiam ser controlados através do adequado acompanhamento médico, ao qual a paciente reiteradamente nega adesão.

 

A genitora de M.H.B. foi diagnosticada como portadora de Transtornos de Personalidade (Transtorno Esquizotípico, Transtorno de Personalidade Esquizóide e Transtorno Esquizoafetivo) - f. 68/72 -, o que, inclusive, ensejou um processo de interdição da mesma, com nomeação de diversas curadoras provisórias ao longo de sua tramitação, à vista da dificuldade de convivência e relacionamento apresentadas pela ré, que invariavelmente levava suas responsáveis a abandonar o encargo da curatela.

 

Em virtude de denúncias quanto ao comportamento inadequado da demandada em relação a si própria e ao filho (noticiadas, inclusive, por duas de suas ex-curadoras, Sra. M.A.C.F. - f. 357/400, e Sra. E.F.B - f. 334/337, respectivamente prima e irmã da curatelada), bem como pelos indícios de sua incapacidade civil, o menor chegou a ser entregue a sua então curadora provisória - Sra. M.P.M. -, que assumiu sua guarda. Contudo, a criança foi retirada dos cuidados da citada guardiã pela mãe, o que ocasionou mais uma vez a renúncia da curatela, e o consequente abrigamento da criança em 01.09.2008 (f. 08/11, 17 e autos em apenso).

 

O quadro patológico da requerida parece ter corroborado para a configuração de uma relação simbiótica mãe-filho, caracterizada por um apego exagerado e um ciúme patológico da apelante em relação à prole. Tais constatações, evidenciadas no primeiro estudo social e psicológico realizado nos autos (f. 68/72), não caracterizaram, a princípio, motivo suficiente ao afastamento materno-filial, embora tenha sido recomendado, na ocasião, o acompanhamento do caso e o tratamento psiquiátrico-psicológico, especialmente em relação à recorrente.

 

À vista das primeiras observações técnicas, que também evidenciaram a existência de fortes laços afetivos entre mãe e filho, o próprio órgão ministerial fez a proposta de suspensão do processo, com a entrega imediata da criança à genitora, através de sua nova curadora provisória - Sra. T.R.S. -, considerando a importância da preservação do vínculo e da reinserção familiar, condicionada a atendimento psicológico para a requerida e para a criança (f. 101/102)

 

Dessa forma, em 11.03.2009, o menino foi entregue à ré, representada por sua curadora (f. 103, 112/113).

 

No entanto, a nova representante da requerida procurou o Ministério Público logo no mês seguinte, em 23.04.2009, informando "novas e reiteradas violações aos direitos da criança pela própria genitora", consistentes na "falta da assistência à saúde e educação, e alimentação inadequada, exposição da criança a ambiente domiciliar prejudicial à sua formação" (f. 115).

 

Na citada oportunidade, a curadora T.R.S. foi atendida por psicóloga judiciária tendo relatado à mesma que a mãe de M.H.B. "entrega-se a uma vida sexual promíscua, que o filho presencia; sua casa é muito suja, com roupas mofadas, e ela sempre atribuiu a 'culpa' a uma terceira pessoa, não assumindo compromissos. Não vem obedecendo a orientações de como cuidar de seu filho, deixando-o exposto ao frio, às noitadas, o que culminou numa pneumonia. Não mantem compromisso com a Escola que M. está matriculado, e as professoras de tal escola consideram-no um 'filho sem mãe' (sic)" - f. 116/117.

 

A conclusão da psicóloga, então, foi no sentido de que S. "vive em crise psicótica (surto), não se submetendo a nenhum tratamento psiquiátrico que lhe é recomendado" , que "suas crises se cronificam e que ela se recusa a tratar" , o que recomendou "a retirada de M. de sua presença", à vista dos riscos psíquicos e físicos que sua condição trazia à criança. (f. 116/117). Tal orientação foi corroborada pelo Relatório Social de f. 120/121, de 12.05.2009.

 

Diante da situação delineada, o magistrado a quo suspendeu o poder familiar de S.F.B. e aplicou a medida de proteção de abrigamento do menor (f. 122/123), que foi novamente encaminhado à instituição Lar de Maria na data de 13.05.2009, sendo, em seguida, deferida pelo juízo a guarda provisória a um casal que estava no cadastro de adoção e demonstrou interesse por M.H.B., sendo a criança a eles entregue em 01.06.2009 (f. 157/159, 166/167).

 

Ocorre, contudo, que, quando do cumprimento da ordem de busca e apreensão da criança, as Conselheiras Tutelares noticiaram a existência de "muita afinidade entre mãe e filho", narrando, ainda, que a criança se abraçou à genitora, chorando para que não fossem separados, e que a residência estava limpa e organizada naquela ocasião (f. 162).

 

Tal informação, aliada à ausência de esclarecimentos quanto à capacidade da genitora e de novos estudos técnicos realizados na presença da ré, levou este Tribunal a cassar a primeira sentença de procedência (f. 570/574), sob a consideração de que "o feito não se encontrava maduro para o julgamento, já que necessária seja produzida prova interprofissional, dando-se particular atenção a laudo psiquiátrico, para que possam ser afastadas as medidas menos gravosas, antes de que se conclua pela procedência do pedido de destituição (perda) do poder familiar" (acórdão de f. 614/623, de Relatoria do e. Desembargador Manuel Saramago).

 

Retornaram, então, os autos à instância primeva para realização das diligências complementares sugeridas.

 

Posteriomente, juntou-se aos autos informação quanto à renúncia da curatela provisória da demandada por parte da Sra. T.R.S., assumindo o encargo R.A.B. (em 24.08.2009 - f. 681/682), bem como cópia da sentença de improcedência proferida em 15.07.2010 na ação de interdição, na qual o laudo pericial concluiu que a Sra. S.F.B. tem condições plenas de exprimir sua vontade, não padecendo de enfermidade que a impossibilite de praticar os atos da vida civil (f. 636/636v).

 

Houve notícia, ainda, de que a ré teve um outro filho no curso do feito, que está aparentemente bem cuidado (f. 702).

 

Contudo, intimada para comparecer ao ambulatório de saúde mental (f. 685/686), a requerida faltou à primeira perícia agendada (f. 700). Outras tentativas de intimação restaram frustradas (f. 706, 708/715), diante da recusa da ora apelante em fornecer seu novo endereço.

 

Vieram aos autos, ainda, notícia de que a demandada estaria ameaçando a Conselheira N. (f. 716/717).

 

Finalmente, foram realizados os estudos sociais e psicológicos "in loco", tanto com o menor e sua nova família, quanto com a genitora (f. 730/733, 767/769 e 771/773).

 

O primeiro documento, que abrangeu a oitiva dos guardiães (pretensos adotantes), do menor e visita domiciliar, consignou que M., entrevistado, afirmou "suas boas notas escolares e informou suas atividades extracurriculares, que incluem de natação, futebol e violão", listou "seus primos (sobrinhos dos guardiães)" e disse que "se sente bem em Ouro Branco, na companhia dos guardiães". Concluindo, na data de 13.08.2012, que "após quase três anos de convivência as relações estão solidificadas" e que há "um núcleo familiar típico plenamente configurado" (f. 730/733).

 

No segundo relatório social, de 21.02.2013, em visita domiciliar à ré, a moradia foi encontrada em boas condições, não se constatando exposição dela e de seu filho mais novo a riscos sociais e pessoais. Não obstante a melhora do quadro da apelante, noticiou-se que a mesma não deu continuidade ao tratamento psiquiátrico, devido à sua resistência. Em certo momento, informou-se que a mãe "declara contentar com contatos regulamentados, objetivando à criança o acesso à sua história de origem e o estabelecimento de vínculos fraternos com D." (sic).

 

A mesma assistente social consignou, noutro giro, que "ao ser acolhido pelo casal guardião M. adaptou-se muito rapidamente ao novo lar"; "encontrou em C. um 'pai', que supriu imediatamente sua maior carência afetiva e seu maior desejo: ter um pai" ; "M.G. 'substituiu' em parte a ausência da figura materna e os vínculos parentais foram se estabelecendo com a convivência, o carinho e a presença participativa e atuante daquela que logo tornou-se 'mãe' da criança". Continuou afirmando que "além da integração ao núcleo familiar, M. também está integrado ao meio escolar onde frequenta o 4º ano do ensino fundamental em escola de qualidade, tendo vários colegas, considerados seus amigos".

 

Finalizando com as seguintes observações:

 

M. recebeu através dos guardiães atendimento psicopedagógico e psicológico e no momento apresenta-se uma criança bem desenvolvida, comunicativa e bem educada. Muito à vontade durante entrevista aberta, ele relata com entusiasmo a nova vida na família acolhedora. Tudo o que vivencia é motivo de satisfação, realização e felicidade: a amizade com os primos, o cotidiano na escola com professores e seus novos familiares, preponderamentemente seus 'pais'. Por tudo que lhe é proporcionado e pela plena integração e adaptação ao meio familiar, social, escolar e cultural ao qual passou tardiamente a pertencer, M. afirma com convicção o desejo de permanecer com o casal guardião e diz se identificar com o 'pai' C., sua maior referência para formação de sua personalidade masculina. Ele fala de seu sonho em ser médico e apresenta o desejo de incorporar ao seu nome, o sobrenome (A.) daqueles que já são considerados seus pais adotivos. Ele se intitula uma criança feliz com a adoção, cujo processo é de seu conhecimento.

 

A criança tem várias lembranças de sua história de origem, sabe da existência do irmãozinho, manifesta o desejo de conhecê-lo e futuramente rever a genitora. Mas no momento demonstra estar inseguro para um reencontro que necessariamente deverá ser precedido de uma preparação psicológica. (f. 768/769)

 

 

 

Pelo último estudo psicosocial, vislumbra-se uma considerável melhora da apelante, sendo afirmado pela psicóloga judicial que o "quadro apresenta-se em remissão (CID 10 - F31.7) dos episódios de crise" (sic).

 

Porém, apenas isso não é suficiente, a meu ver, para reverter a situação já consolidada, seja à vista da plena adaptação do menor ao novo lar, seja pela reticência da apelante em se submeter a tratamento constante.

 

Extrai-se, de todo o conjunto probatório, que a postura da ré é instável e imprevisível. Ao longo do feito, a genitora apresentou momentos de equilíbrio, nos quais demonstra seu amor e apego à prole, e em outros se descontrolou, descuidou de si mesma e do filho, desentendeu- -se com todos que a cercavam ou ofereciam ajuda, inclusive colocando o menor em risco.

 

Nesse sentido, os relatórios psicosociais afirmaram que a apelante "vive períodos cíclicos de vulnerabilidade, descontrole emocional, afetivo e comportamental. Ora apática, desinteressada e desmotivada; ora eufórica, ativa, agindo compulsivamente" (f. 14), que tem um "comportamento desorganizado em função de suas crises" (f. 116), é "inconstante e impulsiva e não admite interferências em sua vida" (f. 402), características típicas do Transtorno Bipolar, diagnosticado à f. 750 e confirmado à f. 768.

 

Tal circunstância, inclusive, fica clara das cópias do processo de interdição, no qual se efetivaram diversas substituições de curadoras, vindo a renúncia ao encargo sempre fundada na rebeldia e na mudança repetina de humor da curatelada.

 

Os "altos e baixos" e as repentinas alterações comportamentais da ré também se evidenciam na prova oral de f. 232/234, e justificam a aparente contradição entre os depoimentos de T.R.F. e R.G.C. - que noticiam os descuidos da genitora em relação ao filho - e o prestado por M.V.S. - que a qualifica como "excelente mãe". A próposito é esclarecedor o depoimento da ex-curadora de S.F.B. (f. 232), que afirma que, antes de ter um convívio mais próximo com a requerida, via nela a figura de uma boa mãe, pelo que procurou ajudá-la, a fim de que não perdesse o filho, oferecendo-se para exercer o encargo da curatela. Contudo, a depoente continua, dizendo que, após a mãe reaver o menor "tudo mudou", e que pôde constatar que "o que se dizia a respeito do tratamento que ela dispensava ao filho era verdadeiro", pelo que confirmou em juízo as graves denúncias anteriormente relatadas ao Ministério Público e ao Conselho Tutelar (f. 116/117, 120/121).

 

Noutro giro, a patologia da recorrente, conforme decidido no feito de interdição, não lhe acarreta incapacidade civil - embora lhe traga notória debilidade emocional, psíquica e interrelacional -, o que reforça a tese de que a requerida deve ser responsabilizada por seus atos, aí inseridos os momentos de negligência em relação a M.H.B.

 

Em certos períodos, a ré descuidou da alimentação e da saúde do filho, levando-o consigo a locais inapropriados, além de submetê-lo às instabilidades de sua personalidade, que, não tratadas, geravam inseguranças e possibilitavam o desenvolvimento de sintomas semelhantes na criança, como chamou atenção o laudo psicológico de f. 116/117, ao afirmar que o afastamento do menor naquele momento era recomendável para evitar "que venha a desenvolver quadro de distúrbio psíquico semelhante ao da mãe" (sic).

 

O abandono, na hipótese sob análise, se configurou na negligência quanto à integridade física e mental do menor, derivada do descuido da genitora em relação à sua própria saúde psíquica, o que não pode ser desconsiderado pelos momentos de "tranquilidade" em que a ré se apresentou como uma mãe carinhosa.

 

Não se olvida que a moléstia que acomete a requerida é controlável. Contudo, para garantir a estabilidade do quadro, é imprescindível que se faça o adequado tratamento médico e psicológico, ao qual a apelante não aderiu satisfatoriamente, não obstante encaminhada e orientada a respeito durante toda a tramitação do feito.

 

As ex-curadoras foram unânimes em afirmar que S. não se submetia ao acompanhamento psiquiátrico com a constância necessária, o que é corroborado pelos estudos sociais e psicológicos, e pelas informações de f. 659, 780 e 787 do CAPS de Conselheiro Lafaiete, que informam que a paciente abandonou o tratamento ambulatorial.

 

Não obstante a genitora viva um momento "sem crises", a doença que a acomete é crônica, havendo enorme risco de recaídas - de 80 a 90% -, conforme esclarece o último relatório psicológico, realizado em 24.03.2013:

 

A maior parte dos pacientes com transtornos de humor tem bom prognóstico, com remissão completa e controle de reicidivas, desde que estejam adequadamente tratados. No entanto, S. sempre se mostrou bastante resistente ao tratamento psiquiátrico e, no momento, não faz qualquer tipo de acompanhamento neste sentido. Ela apresenta sintomas fóbicos, dificuldades em estabelecer relação de confiança, mania de perseguição, tudo fruto de seu quadro psiquiátrico e também de seus vivências, inclusive, a perda do filho M. Por este motivo é de difícil adesão aos tratamentos, pois não consegue confiar nos médicos e demais profissionais que a atendem, muito menos nos medicamentos por eles prescritos. Além disso, seu quadro clínico a torna, em muitos momentos, uma pessoa de difícil manejo, afastando os próximos e S. é muito sozinha e não tem quem a acompanhe e incentive.

 

(...)

 

S. é inconstante, não adere adequadamente a tratamento, há elevado risco de recidivas, o que nos faz considerar que a aproximação de M., no momento, possa não ser benéfica para a criança. M ainda é muito sensível às suas vivências enquando com S. e o contato novamente com sua instabilidade afetiva pode lhe ser desestruturante.

 

(...)

 

Para retomada de contatos entre M. e S., e priorizando a integridade psíquica da criança, acreditamos que seria prudente que S. estivesse em tratamento, comprovado nos autos, e que M e seus 'pais' estivessem em acompanhamento psicológico, como forma de preparação. De qualquer maneira, todo o manejo da situação será bastante delicado, trará repercussões emocionais e influenciará nas dinâmicas de todos os envolvidos.

 

A submissão de S. ao tratamento lhe trará maior estabilidade emocional, o que também beneficiará D. No momento, a criança parece bem protegida, mas devido ao padrão clínico da mãe, entendemos prudente o acompanhamento da família pelas redes assistenciais. (f. 771/773)

 

O quadro psicológico da recorrente ainda é delicado, notadamente diante de sua recusa a se submeter ao acompanhamento psiquiátrico constante.

 

Em suma, os últimos estudos técnicos consideram cedo até mesmo para promoção de um reencontro entre mãe e filho, justamente pelo risco de recidivas da apelante, não sendo sequer levantada pelos profissionais especializados a possibilidade de retomada da guarda pela genitora.

 

O apego da mãe ao filho e o sofrimento que o afastamento lhe causa, somado à sua condição patológica, é comovente e inspira sentimentos de compaixão. Porém, o bem-estar da genitora não pode se sobrepor ao da criança, que, sem dúvida alguma, se encontra muito melhor amparada em seu novo lar, onde, além de amor, encontrou a estabilidade, amparo e tranquilidade necessários ao seu pleno e sadio desenvolvimento.

 

Passados mais de 4 anos da inserção do menor em família substituta, este mostra-se plenamente adaptado ao novo núcleo, manifestando inequivocamente seu interesse em permanecer com os atuais guardiães e pretensos adotantes.

 

A infância não espera. Infelizmente, não se pode aguardar indefinidamente a recuperação plena da apelante - que sequer está em tratamento -, mantendo-se a situação de incerteza em relação ao menor, que já se afeiçoou sobremaneira aos novos "pais".

 

M. identifica seus guardiões como referência familiar, tendo vivido com eles quase metade de seus 10 anos, manifestando o desejo de estabilização da atual situação (inclusive com a inclusão do sobrenome de seus pais afetivos ao seu nome).

 

Não se olvida que, preferencialmente, os filhos devem permanecer com seus pais biológicos. No entanto, em casos como o presente, em que o histórico familiar denota a instabilidade da genitora - com risco de recaídas -, aliado à inserção e perfeita adaptação da criança à família substituta, deve prevalecer o melhor interesse do menor.

 

Nesse sentido, citam-se precedentes deste TJMG:

 

FAMÍLIA - AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DE PODER FAMILIAR CUMULADA COM ADOÇÃO - CRIANÇA ENCAMINHADA PARA ABRIGO - APLICAÇÃO DE MEDIDA PROTETIVA PREVISTA NO ART. 98 DO E.C.A - COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA SUBSTITUTA PREVIAMENTE INSCRITA - MANIFESTO INTERESSE À ADOÇÃO - CONVÍVIO COM O CASAL ADOTANDO HÁ MAIS DE 04 (QUATRO ANOS) - ADAPTAÇÃO AO NOVO CONTEXTO FAMILIAR - CRIANÇA INTEGRADA E FELIZ - INTERESSE DO MENOR - PREVALÊNCIA - ARTS. 3º E 43 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - OBSERVÂNCIA - MANUTENÇÃO DA SENTENÇA CONCESSIVA DA ADOÇÃO. 1 - Nos termos do art. 43 do E.C.A., a adoção será deferida quando importar em vantagem real para o adotando e fundar-se em motivos legítimos. 2 - Constatada pelo Serviço Social da Comarca a negligência dos pais biológicos com relação aos cuidados com o filho, é cabível a adoção de medida de proteção para resguardar o interesse no menor. 3 - Verificada a aptidão do casal adotante para o exercício do poder familiar, o que foi confirmado após o convívio com a criança, que hoje se encontra assistida emocional e materialmente, demonstrando adaptação ao novo seio familiar, e perdurando o laço afetivo há mais de quatro anos, deve ser mantida a sentença de procedência do pedido à adoção, privilegiando o princípio constitucional de máxima proteção à criança. (Apelação Cível 1.0024.07.512446-1/001, Relator (a): Des.(a) Sandra Fonseca , 6ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 12/07/2011, publicação da sumula em 12/08/2011)

 

APELAÇÃO CÍVEL. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR E ADOÇÃO. ABANDONO DE MENOR. NEGLIGÊNCIA NO EXERCÍCIO DO PODER FAMILIAR. DANOS À SAÚDE E AO DIREITO DE SER INSERIDA EM UM NÚCLEO FAMILIAR. ADOÇÃO CONCEDIDA. - Justifica a extinção do poder familiar a negligência nos deveres de sustentar, educar e guardar a menor, permanecendo a criança por vários meses em abrigo, por não deter a família biológica condições de provê-la com os cuidados necessários ao seu desenvolvimento saudável, sob o aspecto físico, mas também intelectual, emocional, afetivo, espiritual e social.- Hipótese em que a menor nasceu com problemas de saúde decorrentes do alcoolismo da mãe, tendo sido prestados auxílios por programas sociais à família sem se obter o retorno esperado, ausente estrutura necessária para criar a menina. - Verificada a adaptação da criança na família substituta, onde encontrou todo o amparo necessário para viver dignamente, e presentes os requisitos legais, cabe a adoção, resguardando-se os melhores interesses da infante.- Recurso improvido. (Apelação Cível 1.0024.05.570839-0/001, Relator (a): Des.(a) Heloisa Combat , 7ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 27/11/2007, publicação da sumula em 18/12/2007)

 

 

 

Com tais considerações, NEGO PROVIMENTO AO RECURSO.

 

Custas, na forma da lei.

 

DES. LUÍS CARLOS GAMBOGI (REVISOR) - De acordo com o (a) Relator (a).

 

DES. FERNANDO CALDEIRA BRANT - De acordo com o (a) Relator (a).

 

 

 

SÚMULA: "NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO."

IBDFAM - Sede Nacional - R. Tenente Brito Melo, nº1215 / 8º andar | Santo Agostinho | CEP 30.180-070 | BH - MG | Tel.: (31) 3324-9280

 


Fonte: IBDFAM: Jurisprudência do Dia - 02.06.2014.

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